terça-feira, 18 de maio de 2021

Afinal, houve outras

Um dos livros que li no terceiro quadrimestre de 2020 foi «Política de A a Z», escrito por Pedro Correia e Rodrigo Gonçalves. Publicado em Janeiro de 2017 pela editora Contraponto e apresentado pela primeira vez em sessão realizada no El Corte Ingles de Lisboa no dia 27 daquele mês, em que estive presente, o meu exemplar foi aí adquirido, e autografado pelos autores. Na capa da obra está uma frase que funciona talvez como subtítulo e descrição, «um guia para compreender o sistema político português», o que não é exactamente correcto porque nele estão dezenas de palavras, expressões, conceitos que abrangem praticamente todo o Mundo, bem como a História daquele nos últimos três séculos. De qualquer forma, trata-se, no cômputo geral, de um trabalho do tipo dicionário (mini) enciclopédico bem pensado e elaborado…
… Apesar de conter algumas falhas, alguns lapsos, não muito graves apesar de surpreendentes, como, por exemplo, na entrada «Populismo» (páginas 220-222), Silvio Berlusconi ser apontado também como (ex-) proprietário do clube de futebol Inter de Milão – na verdade, e obviamente, foi-o do outro clube daquela cidade, o AC. Porém, bem pior, e deveras incompreensível vindo de alegados «especialistas», os casos de «impeachment», isto é, de (tentativas de) impugnação e destituição de presidentes dos Estados Unidos da América são referidos e recordados não com um, não com dois, não com três mas sim com quatro erros graves, e não uma mas sim duas vezes. A primeira, precisamente, na entrada «Impugnação» (páginas 145-146), onde se lê: «Aconteceu em Julho de 1974, quando o Presidente norte-americano Richard Nixon foi alvo de um inquérito desencadeado pelo Congresso com vista à sua exoneração compulsiva – um mecanismo constitucional nunca antes utilizado em quase 200 anos de história dos Estados Unidos como país independente. (…) Vendo-se sem saída, Nixon antecipou-se, abandonando o cargo a 9 de Agosto.» A segunda na entrada «Watergate» (página 291), onde se lê: «Nome de um conhecido edifício na capital norte-americana, para sempre associado a uma investigação jornalística do diário Washington Post que culminou no primeiro – e até hoje único – processo de impugnação de um Presidente norte-americano no Congresso. O jornal descobriu que durante a campanha para a sua reeleição, em 1972, o Presidente Richard Nixon ordenara a instalação de escutas ilegais no quartel-general do seu opositor democrata, George McGovern, situado naquele edifício. A impugnação, justificada pelo abuso de poder executivo, só foi travada pela demissão de Nixon, a 9 de Agosto de 1974.»          
Eis os quatro erros. Primeiro, Richard Nixon nunca foi alvo verdadeiramente de um processo de impugnação – este só começa efectivamente se e quando os respectivos artigos de acusação são votados e aprovados no plenário da Casa para depois serem entregues no Senado, onde se procede ao julgamento final; o 37º presidente demitiu-se antes de essa votação ocorrer. Segundo, Nixon não ordenou a instalação de escutas na sede do Partido Democrata no edifício Watergate – embora, sim, tenha tentado posteriormente ocultar a participação de elementos da sua campanha na operação. Terceiro, existiu antes da não impugnação de RN o primeiro, autêntico, processo desse tipo, em 1868 e contra Andrew Johnson, democrata que havia sido vice-presidente de Abraham Lincoln e que lhe sucedeu no cargo após o assassinato daquele em 1865; acusado de abusos de poder presidencial, Johnson acabaria por não ser condenado no Senado por insuficiência de votos (bastava somente mais um!) para tal. Quarto, e acentuando o absurdo de se afirmar que o processo de «impugnação» de Richard Nixon (que, repita-se, não existiu) foi o «único» (à data da publicação de «Política de A a Z»), entre Dezembro de 1998 e Fevereiro de 1999 – ou seja, há pouco mais de 20 anos, o que levaria a crer que os autores se recordariam – aconteceu o mais famoso «impeachment» norte-americano de sempre, em que o também democrata Bill Clinton foi acusado de perjúrio (mentir sob juramento) e ainda de obstrução à justiça, e isto num contexto dominado pela revelação do adultério do 42º presidente com Monica Lewinsky, então apenas o mais recente dos vários em que o ex-governador do Arkansas incorrera; tal como acontecera com Andrew Johnson, as acusações aprovadas na Casa não obtiveram no Senado o número mínimo de votos favoráveis (dois terços), e o marido de Hillary cumpriu até ao fim o seu (neste caso segundo) mandato.
Afinal, houve outras… genuínas, tentadas, impugnações contra presidentes norte-americanos, mas não contra Richard Nixon. E, apenas três anos depois da publicação do livro mencionado, em 2020, ocorreu a primeira tentativa de «impeachment» de Donald Trump, e em 2021  a segunda – ambas baseadas em acusações falsas, mentiras torpes, alegações ridículas, e que de facto em mais não consistiram do que meras manobras de distracção em relação a reais crimes cometidos por democratas. Enfim, o que é de concluir do caso analisado é que mesmo supostos «entendidos» podem fazer (dizer, escrever) disparates, pelo que uma atitude razoavelmente céptica é sempre aconselhável.  

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